Mitologia e os gatos: uma união milenar

Antigas culturas associaram os felinos a deuses e outros seres sobrenaturais; ora foram reverenciados, ora perseguidos

Foto: Bastet do Deus – CoreyFord/iStock

Misteriosos, graciosos, ágeis, sensíveis, independentes, de hábitos noturnos, comportamentos intrigantes e instintos aguçados. Várias das características dos bichanos fizeram com que eles fossem amados, reverenciados e até temidos pelos seres humanos, desde as mais antigas civilizações. Com frequência eles foram associados a aspectos místicos e mitológicos, povoando o imaginário das pessoas. Talvez por isso os gatos carregam, ainda hoje, um ar de fascínio ao seu redor.

FELINOS E DEUSES
Historicamente esses animais tiveram relações com diversas divindades. Na mitologia grega, Ártemis, a deusa da caça e da natureza, é frequentemente acompanhada de animais, inclusive gatos selvagens e outros felinos. Hécate, deusa da magia e guardiã das encruzilhadas, também era associada aos gatos. Os gregos acreditavam que eles tinham poderes mágicos e que eram capazes dever o futuro. Já na mitologia nórdica, a deidade do amor, fertilidade, beleza e guerra, Freya, tinha uma carruagem puxada por dois gatos majestosos que eventualmente lutavam ao seu lado. A deusa cultuada pelos nórdicos, portanto, era associada aos gatos e para ganhar a sua proteção era comum que as pessoas deixassem vasilhas com leite para os bichanos. Um grande estudo genético publicado na revista Nature em 2016 revelou que os vikings tinham os gatos como pets em meados do século VIII – e o DNA felino coletado de acampamentos vikings é o mesmo dos atuais gatos domésticos.
No oriente eles também eram ligados a deuses. Li Shou é uma divindade chinesa ligada aos campos e plantações, muitas vezes retratado como um homem com cabeça de gato ou de leão. Assim como os gatos eram queridos por livraremos celeiros de pragas, Li Shou era adorado como um protetor das colheitas e visto como símbolo de boa sorte e prosperidade.

CIVILIZAÇÃO EGÍPCIA
A relação da civilização egípcia com os gatos merece uma atenção à parte. O Antigo Egito não só gostava dos felinos, mas os considerava sagrados a ponto de condenar à morte uma pessoa que chegasse a matar um bichano. Uma das principais deusas da mitologia egípcia, Bastet (também conhecida como Bast e Ubasti) – símbolo da casa, da fertilidade, do amor e da proteção – era representada com a cabeça de um gato. Outras duas das principais divindades da cultura – Ra, o deus do Sol, e Ísis, a deusa da vida – também apresentavam traços felinos.
Os gatinhos egípcios recebiam até mesmo ritos fúnebres, do mesmo tipo que eram reservados a humanos, ao serem embalsamados e sepultados. No século XIX, arqueólogos descobriram mais de 300 mil múmias de gatos num cemitério na cidade de Tall Bastah, localizada no delta do rio Nilo onde ficava o principal templo da deusa Bastet.

Representações de Cait Sidhe, Freya e Li Shou (de cima para baixo)

LENDAS PELO MUNDO
Na mitologia celta, mais comumente no folclore escocês, existe a figura do Cait Sidhe, um ser feérico que assume a aparência de um gato preto com uma mancha branca no peito. Em gaélico, o nome significa literalmente “gato fada”. Segundo a crença, ele roubava a alma dos mortos que ainda não haviam sido sepultados, por isso a população tentava afastá-lo dos corpos mantendo-os em locais frios – pois supostamente o calor atraía a entidade. De acordo com o criptozoologista britânico Karl Shuker, em seu livro “Mystery Cats of the World” (1989), é possível que a lenda tenha sido inspirada pelo Gato de Kellas, um grande gato preto híbrido de uma espécie doméstica com uma selvagem.
Já nas lendas japonesas, o Bakeneko é um gato com habilidades sobrenaturais, normalmente vingativo, e que pode ganhar seus poderes depois de atingir uma determinada idade ou por ter uma cauda muito grande. Neste último caso, a cauda se divide e ele é conhecido como nekomata, uma representação bem difundida nos animes e mangás do Japão. Ainda no país oriental existe a figura do Maneki-neko, um amuleto bem popular em formato de gatinho com a pata levantada, símbolo de boa sorte e proteção. São muitos os mitos em torno do Maneki-neko, mas um dos mais populares narra a história de um felino que passou a visitar um templo regularmente e, ao acenar para chamar a atenção de um samurai que por ali passava, impediu que o guerreiro fosse atingido por um raio. Agradecido, o samurai então trouxe riqueza e prosperidade para o local e para o monge que ali vivia.

PERSEGUIÇÃO E OBSCURANTISMO
Com tantas culturas associando os gatos ao sobrenatural de maneira positiva, como os bichanos, especialmente aqueles cuja pelagem é preta, ganharam uma associação tão negativa que chega até os dias de hoje? A “lenda” por trás da ideia de que gato preto dá azar é sombria, mas não por ter contornos diabólicos. Na Idade Média acreditava-se que os felinos eram ligados à bruxaria e demônios, propagando histórias que perduraram por séculos. Parte da origem vem da própria relação entre gatos e divindades das culturas pagãs após a ascensão de poder da Igreja Católica, que via tudo como parte de forças malignas ameaçadoras.
Como o gato é um animal de hábitos noturnos e tem olhos que brilham no escuro, a associação dele com o ocultismo acaba sendo reforçada. Acreditava-se que as bruxas, inclusive, se transformavam em felinos e muitos deles chegaram a ser queimados nas fogueiras da Inquisição junto com mulheres acusadas de bruxaria. Apesar de centenas de anos já terem passado, as lendas que relacionam gatos com bruxas e demônios permaneceram fortemente no imaginário popular, trazendo para os dias recentes a ideia de que cruzar com um gato preto é um sinal de azar.


Por Aline Guevara


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